Índice
“Sebenzile Parktown” (2016), clique de Zanele Muholi da série “Somnyama Ngonyama” – Fotos: Divulgação, gentilmente cedidas pela artista e pela galeria Yancey Richardson
Zanele Muholi utiliza seu olhar apurado para eternizar imagens de pessoas que, por diferentes razões ligadas ao preconceito, foram apagadas da história ou tiveram seus discursos silenciados. Sua proposta é garantir que essas memórias componham um retrato contínuo da comunidade LGBTQIAPN+ negra, com destaque para mulheres lésbicas e pessoas trans. Seja por meio de autorretratos ou séries fotográficas em colaboração com quem chama de “co-autores”, suas imagens exploram as complexidades de raça, gênero e sexualidade em diferentes contextos. “Quero garantir a visibilidade de nossa história em espaços politizados. Educar e documentar o passado com nossas vozes, para que ele não se repita”, explica à BAZAAR a artista visual e ativista da África do Sul.
Depois de participar da Bienal de São Paulo em 2010, Zanele retorna à capital paulista para inaugurar a exposição “Beleza Revolucionária” no Instituto Moreira Salles, neste sábado (22.02). “Quando estive em São Paulo, em 2024, produzi autorretratos da série ‘Somnyama Ngonyama’ e iniciamos ‘Faces and Phases: Brazil’. Esses retratos, que incluem pessoas trans e colaboradores não conformes com o gênero, serão exclusivos desta exposição”, revela elu, que se reconhece como não-binárie e traz uma perspectiva queer em sua obra.
O trabalho de Zanele exige honestidade e autenticidade, como gosta de reforçar. “Essa série é profundamente inspirada pela memória de minha mãe. A coroa feita com esponjas de limpeza simboliza o trabalho doméstico e a resiliência das mulheres”, conta. “Na próxima década, quero explorar esculturas que capturem nossa história e façam parte do arquivo político visual.”
“Ordeal” (2003), que faz parte do acervo do londrino Tate – Fotos: Divulgação, gentilmente cedidas pela artista e pela galeria Yancey Richardson
Após encerrar sua exposição no Tate Modern, em janeiro, Zanele mergulha em novos desafios, incluindo a publicação de dois volumes de “Somnyama Ngonyama”. “Continuo também com os projetos visuais que iniciei, como ‘Only Half the Picture’, ‘Faces and Phases’, ‘Beulahs’, ‘Somnyama Ngonyama’, ‘Brave Beauties’ e outros.” Além do Brasil, Zanele tem mostras agendadas em Portugal, Los Angeles e Nova York, além de participações em grupos nos Estados Unidos, Europa, Ásia e Austrália. Assim como o corpo se transforma com o passar do tempo, Zanele Muholi utiliza os rostos como veículos de memória e identidade, registrando as experiências de cada fase da vida. Sua arte evolui para garantir que as histórias apagadas não sejam esquecidas.
Leia abaixo a entrevista completa:
“Miss D’vine” (2007), obra de Zanele Muholi – Fotos: Divulgação, gentilmente cedidas pela artista e pela galeria Yancey Richardson
Harper’s Bazaar – Você já teve contato com artistas brasileiros ou conhece aspectos da nossa cultura? Como foi a conversa com os curadores sobre trazer esta exposição para o Brasil? Houve algum pedido especial ou bastidor interessante que possa compartilhar?
Zanele Muholi – Durante minha primeira visita ao Brasil, me apresentaram a algumas organizações, ativistas, performers e profissionais de museus que também fazem parte da comunidade LGBTQIA+. Aprendi muito com eles. Achei incrível o quanto eram únicos e autênticos, profundamente conectados com sua língua, cultura, dança, entre outros aspectos. Me mostraram como abraçam suas raízes e me apresentaram a espaços culturais importantes.
Três curadores me entrevistaram e também permitiram que minha diretora de fotografia (DOP) virasse a lente para eles. Foram feitas perguntas sobre o envolvimento deles, a logística, os preparativos e a compreensão da exposição. Era fundamental para mim que não apenas conhecessem meu trabalho, mas entendessem seu propósito. Conversamos sobre a visão e a missão da minha obra. Foi também uma oportunidade para trocas culturais.
HB – A exposição no Brasil traz algo exclusivo ou diferente em relação ao que já foi apresentado em outros lugares? Gostaria de voltar para produzir uma série de retratos no País?
ZM – Quando estive em São Paulo, em 2024, produzi autorretratos da série “Somnyama Ngonyama” e também fiz contato com a comunidade LGBTQIA+. Foi então que começamos “Faces and Phases: Brasil”, e esses retratos farão parte da exposição. Essa é a grande exclusividade. A série inclui pessoas trans e colaboradores que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído ao nascer.
HB – Como você percebe o contexto brasileiro — suas dinâmicas sociais, raciais e culturais — em relação aos temas abordados na exposição?
ZM – Como o Brasil não é um país homogêneo, explorar suas dinâmicas sociais, raciais e culturais é uma tarefa complexa. Minha exposição acontece apenas no Instituto Moreira Salles (IMS), em São Paulo, mas sei que o contexto mudaria dependendo da cidade, das demografias e dos diferentes recortes sociais. Com esta única exposição, espero receber algum retorno do público. No entanto, quando participei da Bienal de São Paulo em 2010, as pessoas foram bastante receptivas ao trabalho apresentado. As organizações que visitei em 2024 trabalham com questões queer e me passaram segurança para voltar.
“Mellissa Mbambo” para a série “Brave Beauties”, clicada em South Beach, Durban, na África do Sul (2017) – Fotos: Divulgação, gentilmente cedidas pela artista e pela galeria Yancey Richardson
HB – Seu trabalho já foi exibido em contextos culturais muito diversos. O que você aprende sobre si e sobre sua arte a partir dessas interpretações tão variadas?
ZM – A singularidade e a importância deste trabalho me ensinaram que ainda há muito a ser feito. Aprendi que minha voz importa e que o que faço é bem recebido. Quando comecei meus projetos, eu não sabia que poderia falar e ter uma voz a ser ouvida. Hoje, entendo o impacto do meu trabalho. Ele educa diferentes comunidades: acadêmicos, ativistas, artistas e muitas outras pessoas.
HB – Muitas das suas fotografias são profundamente íntimas. Como você estabelece essa conexão tão intensa com quem fotografa?
ZM – Muitos fatores influenciam. Primeiro, trabalho com pessoas que já conhecem minha obra e meu estilo. Trata-se de confiança. As pessoas precisam saber que estão em um espaço seguro antes de se permitirem ser vulneráveis.
Trabalho recente da série “Somnyama Ngonyama” que, em 2026, ganhará novo livro – Fotos: Divulgação, gentilmente cedidas pela artista e pela galeria Yancey Richardson
HB – Seu trabalho desafia normas sociais e sistemas de opressão. Qual é o papel da vulnerabilidade no seu ativismo, tanto na arte quanto na forma como compartilha histórias?
ZM – O tipo de trabalho que faço exige honestidade e autenticidade — e ambas exigem vulnerabilidade. Eu também sou um ser humano com sentimentos, então isso naturalmente faz parte do processo.
“Miss Lesbian I, Amsterdam” (2009), de Zanele Muholi – Fotos: Divulgação, gentilmente cedidas pela artista e pela galeria Yancey Richardson
HB – Crescendo sob o apartheid, sua arte parece muitas vezes um diálogo com a história. Como você equilibra o enfrentamento desse legado com a criação de novos espaços de esperança e alegria?
ZM – Sabemos que a história molda nosso caminho, mas temos a responsabilidade de educar aqueles que não têm conhecimento ou que não estavam aqui para testemunhar as atrocidades do passado. Conversas intergeracionais são essenciais para esse diálogo. Minha mãe era trabalhadora doméstica e meu pai, um imigrante do Maláui que morreu jovem. A educação bantu garantia que crianças negras tivessem oportunidades limitadas e fossem preparadas para o trabalho doméstico. O luxo de atividades extracurriculares, como visitar um museu, era impensável.
Quis preencher essa lacuna e mudar essa narrativa. Quero garantir que sejamos visíveis nesses espaços historicamente políticos. Não é algo supérfluo — é essencial para a educação e a memória coletiva. Precisamos ocupar lugares antes inacessíveis enquanto compartilhamos nossas vivências e garantimos que a história não se repita.
1 / 4Retratos da série: “Faces e Fases”, em que Zanele Muholi registra pessoas LGBTQIAPN+ de diferentes partes do globo como um livro de memórias. Nas imagens da galeria, rostos da África do Sul entre 2011 e 2013 – Fotos: Divulgação, gentilmente cedidas pela artista e pela galeria Yancey Richardson
2 / 4Retratos da série: “Faces e Fases”, em que Zanele Muholi registra pessoas LGBTQIAPN+ de diferentes partes do globo como um livro de memórias. Nas imagens da galeria, rostos da África do Sul entre 2011 e 2013 – Fotos: Divulgação, gentilmente cedidas pela artista e pela galeria Yancey Richardson
3 / 4Retratos da série: “Faces e Fases”, em que Zanele Muholi registra pessoas LGBTQIAPN+ de diferentes partes do globo como um livro de memórias. Nas imagens da galeria, rostos da África do Sul entre 2011 e 2013 – Fotos: Divulgação, gentilmente cedidas pela artista e pela galeria Yancey Richardson
4 / 4Retratos da série: “Faces e Fases”, em que Zanele Muholi registra pessoas LGBTQIAPN+ de diferentes partes do globo como um livro de memórias. Nas imagens da galeria, rostos da África do Sul entre 2011 e 2013 – Fotos: Divulgação, gentilmente cedidas pela artista e pela galeria Yancey Richardson
HB – “Faces and Phases” não captura apenas identidades, mas experiências vividas. Como você escolhe as pessoas que fotografa? O que essas colaborações te ensinam?
ZM – Essa série é uma forma de celebrar e homenagear todas as pessoas que fizeram parte dos movimentos queer na África do Sul e além. Conheci muitas delas em protestos, Paradas do Orgulho e eventos organizados por instituições com as quais já trabalhei.
A história nem sempre registra aqueles que fazem o trabalho pesado. Eu quis registrar algumas dessas narrativas visuais representativas. “Faces” representa a beleza da pessoa, e a série fala sobre suas experiências e transformações ao longo da vida. Reconheço a importância das vozes que compartilham essas histórias em nome de quem foi silenciado.
HB – Seus autorretratos frequentemente mesclam o pessoal e o político. Como você decide o que revelar de si e qual é o impacto dessa exposição em sua trajetória?
ZM – Nossas experiências cotidianas, interações e ações são políticas, e isso influencia a fotografia a ser feita. Às vezes, crio a partir de sonhos. Recentemente, trabalhei em uma imagem usando uma coroa de alfinetes de segurança. Ela fala sobre solidariedade e sobre as perdas que enfrentamos enquanto povo. “Somnyama Ngonyama” é uma obra profundamente inspirada na memória da minha mãe e na admiração que tenho por sua resiliência.
Ela era trabalhadora doméstica. Em uma das imagens, usei esponjas de aço como coroa, remetendo ao trabalho doméstico. No passado, trabalhadoras negras empregadas por famílias brancas precisavam desenvolver diversas habilidades — desde limpar panelas até saber nadar, caso precisassem salvar uma criança na piscina. O uso desses materiais carrega a mensagem de que devemos nos orgulhar do nosso trabalho, por mais duro que seja. Porque, no fim, estamos cuidando de nossas famílias.