Cacá Diegues – Foto: Divulgação
Ao longo de mais de seis décadas de carreira, Cacá Diegues construiu uma filmografia marcante, repleta de histórias que capturam a essência do Brasil. Nascido em Maceió, foi um dos grandes nomes do “Cinema Novo”, deixando sua assinatura em clássicos como “Xica da Silva” (1976), “Bye Bye Brasil” (1980) e “Tieta do Agreste” (1996). Mesmo aos 84 anos, o grande nome do audiovisual brasileiro seguia ativo e otimista.
Em 2023, BAZAAR reuniu Diegues para uma conversa com Marta Torres, atriz, produtora e cineasta da nova geração alagoana. Diretora do premiado A Missão Encantada e criadora da série Farofeira Pelo Mundo, ela vem conquistando espaço com sua abordagem inovadora e sensível ao cinema.
No encontro, os dois discutiram suas trajetórias, as transformações do cinema brasileiro e a crescente presença feminina na indústria. Em homenagem ao legado de Cacá Diegues, resgatamos essa entrevista de Duda Leite. Leia na íntegra abaixo:
Cacá Diegues – Saí de Maceió com 6 anos de idade. Meu pai foi para o Rio de Janeiro e me levou. Voltava sempre nas festas de fim de ano. O Rio para mim é Santo Inácio, colégio onde estudava. Mas meus amigos eram pessoas de Maceió. Enquanto Maceió me deu muitas pessoas, o Rio de Janeiro foi o lugar onde conheci o mundo, onde comecei a trabalhar. Minha primeira namorada foi de Maceió. Não posso dizer que meu cinema é fruto de Maceió. Mas, de certa forma, sua presença foi algo constante.
Marta Torres – Eu, por tabela, sou muito influenciada pelo cinema de Cacá Diegues. Estava assistindo hoje Deus É Brasileiro e me senti representada quando vi aquela beleza de Alagoas sendo retratada. E me recordei da cena em que Deus chega ao mundo e vai conversar com o personagem de Wagner Moura, e ele pede a Deus para ir à feira. “Mas isso é coisa de zé povinho”. Em vez de querer ir ao supermercado, porque na época estava um boom. Comecei a fazer cinema justamente com uma série que se chama Farofeira Pelo Mundo, que reúne uma parte documental sobre a feira, e uma história de ficção. A possibilidade de fazer cinema foi despertada por Deus É…, até então, não imaginava um alagoano fazendo cinema.
Harper’s Bazaar – Marta, quais filmes do Cacá mais te influenciaram?
Marta Torres – Me lembro de Ganga Zumba (1963), lá do início, que tem aquelas cenas no canavial. Quem em Alagoas não cresce com aquela imagem? É muito representativa. E, sem dúvida alguma, Tieta. Para mim, é o empoderamento da mulher nordestina, que sobressai por toda essa cultura machista. E ainda assim consegue encontrar o seu caminho. Isso me influenciou como pessoa. Uma coisa que a gente (ela e Cacá) tem em comum é o nosso editor, o Daniel Garcia. Entrou na minha vida para fechar meu curta-metragem. Chamei porque soube que trabalhava com Cacá. Ele já tinha esse traquejo com nossa alagoanidade, esse jeito diferente de encarar a vida.
Cacá Diegues – Ele foi fundamental nesse meu novo filme. Deu muitas ideias, não só na edição, mas na construção. É um spin off do Deus É Brasileiro. Os personagens são os mesmos, mas as situações, diferentes. E se chama Deus Ainda é Brasileiro porque se passa aqui. Hoje em dia é difícil dizer que Deus é brasileiro. Está tudo muito difícil, mas ainda temos que manter a esperança e acreditar que ainda temos um futuro.
Harper’s Bazaar – O Brasil é sempre o país do futuro, finalmente estamos chegando lá?
Cacá Diegues – Tenho minhas dúvidas. É um país complicado, muito difícil. É o único do mundo que tem essa mestiçagem, entre negros, indígenas e europeus. Muito difícil dizer se o Brasil vai dar certo. Mas já me acostumei a isso desde criança, a conviver com o Brasil do futuro. Nos últimos quatro anos, a gente não tinha futuro nenhum. Ficamos abandonados no tempo e no espaço. Aliás, tenho um amigo que diz que o mundo já acabou. Estamos vivendo nas ruínas do mundo. Minha mulher, Renata (Almeida Magalhães), tem uma tese muito bonita, em que diz: “O mundo já acabou, mas nesses países onde o mundo já acabou, existe um futuro que já está comprometido. Enquanto no Brasil, você consegue viver a esperança do futuro. É um país que está organizado, tem certa miscigenação, e que encontrou um modo de sobreviver nesse caos”. Eu não sei se é verdade, mas no meu cinema, sempre vivi essa ideia do Brasil como país do futuro. Hoje em dia, fica difícil enxergar qual será o futuro. No século 18, tivemos a Revolução Francesa, que levou ao mundo o conceito que se baseia em três pilares:
Liberdade, Igualdade e Fraternidade. A Liberdade foi roubada pelos bancos. A Igualdade foi roubada pelo capitalismo. Então, só sobrou a Fraternidade e temos de viver com isso. Tentar abraçar isso no dia a dia.
Marta Torres – Estava assistindo a uma entrevista sua, de 1986, quando o Brasil se preparava para a Constituinte. Foi perguntada exatamente essa mesma coisa, e você disse: “Não estou com a demagogia otimista, nem com a euforia pessimista”. Achei fantástico. Na mesma entrevista, você diz que “o cinema é a verdadeira bomba atômica do mundo”.
Marta Torres – Foto: Wallace Domingues, com direção criativa de Kleber Matheus, styling de Bruno Uchoa, maquiagem por Erika Livran, direção de arte de João Pessoni, produção executiva de Zuca Hub/Claudia Nunes, coordenação de Mariana Simon e assistente de foto Rodarlen Rocha
Harper’s Bazaar – Vocês veem uma mudança na presença das mulheres na indústria?
Cacá Diegues – Acho que sim. Hoje em dia, a revolução que elas fazem no mundo todo, de resistência, está no cinema. Hoje, é um espaço feminino. Quando fiz meu primeiro filme, olhava em volta e só tinha uma mulher, aquela que trazia o cafezinho. Hoje em dia, é impossível pensar em um cinema sem mulher.
Marta Torres – Teve um momento em que estava em uma sala nos Estados Unidos, com quatro homens, tentando passar uma ideia da minha cabeça para um curta. Entendi que a revolução feminista estava sendo feita naquele momento.
Cacá Diegues – Vou contar um segredo. Quando me veio a ideia de Deus Ainda É Brasileiro, no Brasil de 20 anos depois, Deus volta à terra e tem de resolver os problemas do mundo, ou acabando com o Brasil, ou trazendo as mulheres para dentro. Uma coisa é certa: o Brasil vai depender muito das mulheres daqui para frente. É uma questão de empoderamento. Elas são a chave do futuro do cinema brasileiro.