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Exposição tira das sombras o vínculo entre mafiosos e o mundo das artes

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PORTAS ABERTAS – Palazzo Reale: sede da mostra de obras recuperadas dos bandidos (Sharon Gallo/iStock/Getty Images)

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Na premiada série Família Soprano, Tony Soprano, patriarca de uma família do crime em Nova Jersey com raízes na Itália, é um bandido truculento, sim, mas sensível e cheio de angústias, a ponto de consultar uma psicanalista por causa de insistentes sonhos com uma família de patos que coloniza sua piscina e, depois, voa para longe — imagens que lembram uma tela do pintor britânico David Hockney. A relação é citada na série e levanta a pergunta: podem gângsteres ter um fraco pelo belo? A resposta é positiva, mais por prestígio e apelo financeiro do que propriamente por admiração pelos grandes mestres. Uma recém-inaugurada exposição itinerante no Palazzo Reale de Milão, SalvArti: dos Confiscos às Coleções Públicas, se debruça sobre a complexa e histórica relação entre as máfias italianas e a arte, levando a público 83 obras de nomes como Salvador Dalí, Andy Warhol e Giorgio de Chirico, todas apreendidas em operações contra organizações criminosas no país.

O acervo da mostra nasceu de duas investigações distintas. O inquérito sobre uma megarrede internacional de lavagem de dinheiro levou um tribunal de Roma, em 2013, a decretar a apreensão de sessenta obras pertencentes a figuras ligadas a várias organizações, entre elas Beniamino Gioiello Zappia, o Don Tito, dono de 345 valiosas pinturas e ex-chefe do clã Rizzuto, uma das famílias que compõem a hoje debilitada máfia siciliana Cosa Nostra. “A coleção foi acumulada com dinheiro roubado do povo. A exposição é uma espécie de compensação”, disse a VEJA Giuseppe Falcomatà, prefeito da cidade de Reggio Calabria.

As outras 23 peças vieram de uma operação montada contra Gioacchino Campolo, um dos grandes nomes da ‘Ndrangheta calabresa, que fez fortuna adulterando caça-níqueis em cassinos. Após ser condenado a dezoito anos de prisão, seus bens, avaliados em mais de 400 milhões de dólares, foram confiscados pelas autoridades italianas em 2016 — e 125 obras de arte apareceram na cozinha, no banheiro e até embaixo da cama do mafioso, cada qual com seu certificado de autenticidade, como Romeu e Julieta (1975), de Dalí, Summer Arts in the Parks (1980), de Warhol, e Concetto Spaziale (1964), de Lucio Fontana. Por ironia do destino, Campolo, vejam só, foi vítima de golpe em relação ao único Picasso da lista — o original está bem guardado no MoMA de Nova York.

COLEÇÃO - O calabrês Campolo (acima à esq.): telas de Andy Warhol (à dir.) e de Salvador Dalí (abaixo) encontradas no banheiro e na cozinha de sua casa estão na exibição
COLEÇÃO - O calabrês Campolo (acima à esq.): telas de Andy Warhol (à dir.) e de Salvador Dalí (abaixo) encontradas no banheiro e na cozinha de sua casa estão na exibição (Reprodução; Piero Cruciatti/AFP; Piero Cruciatti/AFP)

Boa parte das obras em exposição foi comprada legalmente, por testas de ferro, em leilões, aproveitando uma brecha desde sempre usada para lavar dinheiro: ao contrário de bancos, cassinos e casas de câmbio, os comerciantes de arte nos Estados Unidos e na Europa não precisam reportar grandes transações a agências governamentais. “Falta de regulação, proteção contra desvalorização e métodos subjetivos de precificação de pinturas tornam esse um investimento perfeito para esconder a origem ilícita de capital”, explica Antonio Nicaso, autor de mais de cinquenta livros sobre as máfias italianas. Nesse contexto, as transações de arte viraram playground para gângsteres, que aproveitam para lucrar com um mercado que movimentou 65 bilhões de dólares no ano passado. “A preferência é pelo moderno e contemporâneo, por pura conveniência: são peças mais fáceis de comprar, de vender e de valorizar”, resume Nicaso. Segundo a polícia, pinturas e esculturas são protagonistas nos 18 bilhões de dólares (1% do PIB italiano) em bens confiscados de criminosos entre 2015 e 2019.

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A ganância se alia à vaidade na relação da máfia com as artes. O último dos grandes capi, Matteo Messina Denaro, preso em 2023 e morto logo em seguida, acumulou tesouros arqueológicos do Império Romano impossíveis de ser revendidos, mas que expunha a quem podia, quando podia. “O vínculo com o que é belo dá status, passa a impressão de alguém inteligente ou culto”, afirma Anna Sergi, criminologista da Universidade de Essex. “Para membros da máfia, ser invejado, admirado, é fonte de poder”, completa. Há também raros exemplos de conexão entre mafiosos e vultosos roubos de obras prestigiadas. Em 2016, dois quadros de Vincent Van Gogh, surrupiados catorze anos antes do museu dedicado ao pintor holandês em Amsterdã, foram achados em uma base da Camorra, a máfia napolitana, onde operava o senhor das drogas Raffaele Imperiale. A polícia acredita que, nesses casos, as pinturas funcionam como garantia ou moeda de troca entre traficantes.

A era áurea — e sangrenta — dos chefões mafiosos na Itália teve início em meados do século passado e predominou até Francesco Madonia, o Don Ciccio, protagonizar a célebre mattanza, uma guerra interna com mais de 800 assassinatos entre 1981 e 1984. Ela precipitou reação contundente das autoridades, minando o poder da Cosa Nostra e suas ramificações. “Naquela época, Don Ciccio já ostentava pinturas e artefatos para se gabar”, diz o escritor Nicaso. Por caminhos tortos, agora 83 obras de qualidade, roubadas ou adquiridas por interesses espúrios, saem da sombra. Parafraseando um diálogo famoso de O Poderoso Chefão, a ordem agora é: deixem as armas, peguem as telas.

Publicado em VEJA de 17 de janeiro de 2025, edição nº 2927

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