Como a carta de vinhos de um restaurante pode se tornar intragável | AL VINO

Como a carta de vinhos de um restaurante pode se tornar intragável | AL VINO

“Grande carta de vinho… Vou querer… hmmmm…. o segundo vinho mais barato” (Reprodução/VEJA)

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É preciso muita vontade de tomar vinho para superar algumas barreiras. Em alguns restaurantes, ao pedir a carta de vinhos, você é brindado com um livro no melhor estilo bíblia, grosso, imponente de capa de couro – e dezenas de páginas. Conteúdo organizado por regiões produtoras. Primeiro os tintos. Depois, brancos, rosés e espumantes. Lá pela metade da leitura, muitas vez, a vontade de beber vai sendo substituída pela vontade de chorar.

Ok, confesso, estou exagerando um pouco – mas não muito. Movida por curiosidade profissional, normalmente avanço na leitura. Nem todo mundo tem essa paciência para encarar a “bíblia dos vinhos”. Já pude presenciar o absoluto constrangimento de muitos comensais buscando nomes familiares naquela lista imensa ou simplesmente valores os que atraíssem (sim, ainda é muito comum a clássica “técnica” de escolher o rótulo pela coluna da direita…). Alguns simplesmente desistem e, desastre para o mundo do vinho, optam por uma cervejinha gelada ou drink, que tem ganhado cada vez mais espaço, principalmente entre o público mais jovem.

Por que muitos restaurantes ainda insistem em entregar aos clientes essas cartas de vinhos intragáveis? Ostentação, preguiça, descuido? Em boa parte das vezes, há razões comerciais por trás dessa praga. Vários restaurantes vivem sob algemas das importadoras que fornecem os rótulos dessas casas. Em troca de ocupar espaço de 90% da carta, essas importadoras oferecem máquinas para vinho em taça ou até reforma de adegas. Quem perde é o consumidor. Faça um teste: em São Paulo, experimente dar uma volta em bairros como Itaim Bibi ou Jardins. Em algumas das casas com as mais diversas propostas gastronomicas a carta de vinhos é quase a mesma, sem nenhuma personalidade – e, em alguns casos, sem qualquer sintomia com a proposta dos restaurante.

Para os estabelecimentos que ainda insistem em despejar na frente dos clientes essas “bíblias”, vale prestar atenção numa tendência que vem ganhando força. Cada vez mais temos visto por aí o que os críticos do New York Times têm chamado de “short and smart lists”, listas curtas e espertas. É o chamado ganha-ganha: por serem muito mais simpáticas para os consumidores, são mais eficientes para os negócios, gerando mais vendas. Ao se deparar com uma dessas “short and smart lists”, você não precisa ser um expert se quiser um prosaico branco fresco para um aperitivo num final de tarde quente.

É verdade que, logo após a pandemia, muitos restaurantes por aqui, na maioria das vezes aqueles que têm suporte de sommeliers, adotaram cartas mais rápidas, com menos rótulos. Naquele momento, podia-se dizer que era uma maneira de fazer o caixa girar de forma mais veloz – uma grande adega permanentemente cheia é sinal de dinheiro parado. Com o passar do tempo, porém, as “bíblias”, infelizmente, voltaram com força.

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Se alguém tem ainda dúvida a respeito do erro que estão cometendo, vai aqui mais um argumento das cartas mais enxutas: aquelas com cerca de 30 rótulos costumam ter vinhos que se adequam melhor aos menus e até à sazonalidade dos ingredientes, o que tem sido uma bandeira para muitos chefs.

EXAGEROS POR TODA PARTE

Eu já falei aqui na coluna AL VINO a respeito de um restaurante especializado em peixes de frutos do mar que tinha uma carta de vinhos repleta de argentinos bem pesados, um autêntico atentado à harmonização. Nas listas mais enxutas esse tipo de erro é menos comum. O critico Eric Asimov que escreve há 30 anos sobre vinhos (atualmente, é colunista do New York Times), contou recentemente de um restaurante, o Smithereens, no East Village, em Nova York, especializado em peixes. Asimov foi só elogios à carta do estabelecimento, citando-a como um ótimo exemplo. Entre as 62 opções de vinho, o Smithereens tem 32 Rieslings (uva branca), 29 outros brancos e um tinto, um Pinot Noir da Alemanha.

Segundo Nikita Malhotra, diretora de vinhos da Smithereens, o Pinot Noir solitário na carta do restaurante não significa que os tintos por lá não são valorizados. Com uma carta mais curta e liberdade de escolha, Malhotra pode na primavera, por exemplo, inverter a dinâmica e ter mais tintos, que fiquem bem com o seu menu. Achou que 62 opções de vinhos numa carta é muita coisa? Pois há pizzarias em São Paulo com um menu de vinhos com mais de 1 000 rótulos. Vale repetir: 1 000 rótulos numa carta de vinhos!

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Outro ponto a favor das cartas curtas e não dos rebuscados catálogos é que, com menos rótulos, você dá oportunidade para as pessoas provarem coisas novas, o que tem sido muito bem-vindo pelos novos consumidores de vinho. Em janeiro, estive no Lago de Como, na Itália, e fomos fazer um aperitivo na Enoteca da Gigi, a mais antiga da cidade, fundada em 1930. Diante de uma vasta seleção de rótulos da Lombardia e Piemonte, além de uma espetacular curadoria de vinhos franceses, na carta havia apenas 5 tintos (em taças), 3 brancos e um espumante.

Bingo! Provei um Barolo, que custava 9 euros. Espetacular, delicadíssimo. A escolha da taça do Baroo del Comune di Morra 2020, Potere Marcarini, durou cerca de dois minutos. No restante da experiência, em vez de gastar tempo tentando decifrar um catálogo, curtimos a atmosfera, o atendimento, os acepipes. Sofrimento zero com carta. Nem sempre foi assim nessa viagem. No almoço de aniversário de 13 anos meu filho, fui brindada numa trattoria no centro de Como com a tradicional bíblia de capa de couro. Eu estava festejando meu menino, batendo papo com a família e não querendo aula de enologia. Fechei a carta,  chamei o garçom, pedi um rosé da região — e assim foi feita a escolha.

A sommelière nova yorkina Lee Campbell, que trabalha com vinhos e restaurantes desde a década de 1990, pontua que a clientela de Manhattan é bem menos aventureira do que os clientes do Brooklyn, para os quais ela elaborou listas de vinhos naturais muitas vezes esotéricos. O mesmo poderíamos espelhar aqui em São Paulo, onde certamente quem frequenta os mais tradicionais italianos da cidade não é o mesmo perfil de cliente que ocupa as cadeirinhas de praia de Pinheiros num wine-bar descolado. Tanto em um quanto no outro, o bebedor de vinho não quer se aborrecer com cartas imensas, longas e enfadonhas. Lee ainda pontua: não faz nenhum sentido oferecer 27 champanhes e Barolos diferentes. Algumas garrafas bem escolhidas fazem maravilhas.

Tem toda razão. No caso das cartas de vinhos, menos é mais. O consumidor agradece.

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